martes, 13 de julio de 2010

A NEGRA SOMBRA DO TEMPO




obra de James Dickson



"Tudo tem o seu tempo"

tempo de nascer,
tempo de morrer;
tempo de plantar,
tempo de recolher;
       ...
tempo de chorar,
tempo de rir;
        ...
tempo de abraçar,
tempo de afastar;
        ...
tempo de calar,
tempo de falar;
        ...
tempo de guerra,
tempo de paz.

Eclesiastes,3,1-8 

Encontrava-me eu um dia confundida e sem norte, quando li estes versículos da Bíblia que me puseram ordem por dentro: afinal estava-me a passar o que tinha que passar e que eu ainda não sabia.
A partir daí tudo foi mais fácil, as peças do puzzle começaram a encaixar todas: a resposta à minha confusão estava no Tempo, esse relógio de areia das nossas histórias, breves e emaranhadas — o Tempo, implacável, mas também curativo de todas as feridas, umas vezes cruel e outras amigo, o Tempo que nunca se detém, que nunca retrocede. O Tempo que nos desgasta e nos ensina, o Tempo dos Tempos, sem princípio nem fim.
Adaptamo-lo às nossas pequenas vidas, domesticamo-lo em calendários, em horas e minutos, até que um dia arrasa com todas as cadeias, como um mar bravo e indomável, e de repente um segundo pode valer mais que um ano ou um momento mais que a eternidade...
E quando se acaba o nosso tempo o Tempo continua sem nós, sem involucrar-se com nada nem com ninguém, porque o Tempo não existe.
Olhando para trás pus-me a recordar os fins do século XIX e os princípios do século XX:
a vida era muito mais dura e complicada, difícil e retorcida a todos os níveis, por muito que nos queixemos agora. Era cruel, atrasada, injusta. E quanto mais para trás olhemos pior, mais obscurantismo, menos oportunidades e menos desenvolvimento da humanidade como conjunto — sempre em termos relativos, claro está.
Nem os nobres ou os curas, nem sequer os próprios reis, tinham a qualidade de vida de que goza  hoje em dia  qualquer cidadão médio de qualquer país civilizado. É evidente que o terceiro mundo continúa aí, às vezes ao nosso lado, mas pelo menos o terceiro mundo já não somos quase todos.
Mas venho falar aqui hoje, não do que falta por andar mas sim de caminhos há já muito tempo trilhados, venho simplesmente falar da minha avó...
Quando nasci tinha ela a idade que eu tenho agora, sessenta e cinco, era miúda e de aparência frágil, com o cabelo prateado e um vestir de velha escura, à maneira da época, com um certo toque de elegância e distinçao. Eu então pensava (como todos os jovens) que os velhos nunca tinham sido novos, que  tinham sido sempre assim, que a vida nunca foi deles. 
Mas um dia o meu pai contou-me muito emocionado uma história, e então descobri a  grande pessoa que havia detrás daquela velhinha de sorriso perene e vida tranquila A partir daquel dia sempre vi nessa mulher a minha heroína particular e não porque não haja vidas ainda piores, que por desgraça há muitas!
Recordo bem que ao ter conhecimento da sua vida, a primeira coisa que pensei foi se eu teria suportado o que lhe tocou viver  com  a mesma resignação , como era possível  que ao seu lado tudo parecesse sempre  tão fácil e bonito.
Começa porque eu não teria sido capaz de ter tido seis filhos, em casa e ainda sem luz eléctrica!  Creio sinceramente que as mulheres de hoje já não nos sentimos preparadas para coisas assim. E então pelo menos a minha avó era muito rica, tinha "criados", a maioria não dispunha dessa ajuda. 
Logo chegou o pior, quando o meu avô conseguiu levar a família à ruína.
Quando se viu completamente pobre, esta senhora já tinha perdido pelo caminho uma filha de catorze anos, com uma espécie de "morte súbita", estando a família a passar o verão no Espinho, e depois chegaria a tuberculose da minha tia Maria, linda rapariga, inteligente e artista. Essa maldita doença, junto com o tifo e a meningite eram o flagelo da época.
Começou a tossir sangue, a manchar de vermelho os delicados lenços brancos bordados ante o espanto e a impotência dos que a adoravam, para apagar-se com apenas vinte anos. (Tenho um quadro lindo de margaridas pintado por ela, e ainda às vezes me arrepio quando lhe limpo o pó. Não cheguei a conhecê-la, claro).
Nesse mesmo mês, el abril maldito em que lhe morreu a segunda filha, a minha avó perdeu também tudo o que tinha por direito próprio, pois sendo órfã de mãe desde que nascera, e sem irmãos, aportou ao matrimónio uma considerável fortuna, casas, terras, a imensa"tapada dos ais", de nome premonitório, tudo leiloado em praça pública. Só se salvou a casa em que viviam,  porque a puseram ao nome dum amigo a tempo, antes de que a justiça embargasse todos os bens.


Aquela casa foi sempre para mim um lugar mágico, era como entrar num "túnel do tempo",  no meu particular País das Maravilhas, tudo permaneceu  tal como era naquele ano de 1929, que apesar de horrível não conseguiu deter o calendário daquelas vidas.
Imagino que para então já teria chegado a  electricidade à vila, e as candelas de metal amarelo seriam já apenas um adorno, e os lindíssimos candeeiros de petróleo, de bronze e porcelana já estariam electrificados, tal como eu os conheci.
Havia uma porta de entrada à casa e outra enorme, por onde entravam outrora cavalos e carruagens, e na fachada oposta à da rua havia um bonito jardim. A vida fazia-se no primeiro andar, e o salão e a cozinha, enormes —ou pelo menos assim me parecia a mim — comunicavam , através de portas com vidraças aos rectângulos de madeira branca, com uma grande varanda que dava ao sul e jardim . Toda essa zona tinha muito sol, era uma casa luminosa e alegre, uma bela casa dos tempos em que a família tinha recursos, com os tectos de madeira, as portas altas com "bandeiras" de vidro , tudo antiquíssimo, os móveis, as porcelanas, um relógio de parede, um piano que já não tocava, tantas coisas que a mim não podiam deixar de deslumbrar-me, ( ainda hoje sou uma fanática das antiguedades), como o desenho dos mosaicos do chão da cozinha, em amarelo forte e castanho escuro. O sótão com os seus tectos inclinados era para mim como um terreno sagrado, havia verdadeiros tesouros para a criança que eu era então, bonecas sem olhos com carinhas de porcelana finíssima, molduras partidas, quadros a meio pintar por mãos que não tiveram tempo de acabá-los, um cavalo de madeira todo partido, um triciclo de rodas enormes, vestidos e chapéus "de época", uma espingarda, uma espada enferrujada, uma chaise-longue espatifada onde eu me recostava a sonhar, rodeada de relíquias dum tempo que já não era.
Aquela casa inspirava-me tanta paz, que quando  me sentia agitada e não podia conciliar o sono  voltava sempre lá em pensamento — até há pouco tempo, quando morreu a minha tia Francisca, que viveu sempre nela, e se me ficou despovoada para sempre.
A grande lição que me deu a minha avó Antónia, foi realmente como continuar a vida quando tudo se torce, como voltar a ter a paz interior suficiente para  lograr aquel sorriso maravilhoso, aquela harmonia até morrer, com mais de noventa anos, duma gripe, sem ter estado doente nunca. O segredo foi, suponho, ter sido capaz de perdoar — e de conseguir também o perdão de todos os  filhos — a um homem, o meu belo avô de olhos azuis, egoísta, narciso, mulherengo, jogador, alcoolizado, vaidoso, pouco trabalhador, pouco inteligente, pouco responsável, e ainda por cima incapaz de amar. Demasiado para uma pessoa só...
 Afinal  já lá vai tudo, mas a minha avó soube ter  presente que a vida é uma oportunidade, e  que como diz Francesca  Mirailles," o que conta não é o que nos passa, mas sim o que fazemos com o que nos passa".

6 comentarios:

  1. Muito bela evocação da força e da ternura da tua avó!
    Vejo o seu sorriso bom,vejo-a "perdoar" a quem tão pouco a amou. Para perdoar é preciso ter força também...

    O poema de António Machado é lindo!
    "Al volver la vista atrás/ se vé la senda que/ nunca se ha de volver a pisar." Tão verdade!

    Continua, minha amiga, porque tens muito para contar! E sensibilidade para escolher...
    Conta com a minha "presença" por aqui...

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  2. E a sabedoria do Eclesiastes é infinita!...
    Esta passagem é tão verdadeira. De facto, o tempo não passa, somos nós que passamos , como me dizia em Tel Aviv a minha amiga Dalit...
    beijinhos
    o falcão

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  3. Bellísimos sus pensamientos sobre el tiempo, María, y conmovedora la historia de su familia…
    Y sin embargo,a veces, es tan difícil saber cuándo es mejor hablar, cuándo es mejor callar….Es tan difícil separarse de alguien, aún cuando sabemos que es lo único que nos queda por hacer…
    El tiempo se nos escapa…aprovechemos el presente…para reconciliarnos con las personas, para decir que las apreciamos, que las queremos.
    No sabemos cuándo se terminará el tiempo de nuestra estancia en esta vida…..Dentro de un rato, dentro de un mes, dentro de veinte años….
    A propósito de todo esto, me ha venido a la mente la historia de San Enrique , Emperador Germánico de la Edad Media,que me impresionó cuando la leí;
    Al poco tiempo de haberse muerto su gran maestro, San Wolfgan, vio Enrique que se le aparecía en sueños y escribía en una pared esta frase: "Después de seis". Él se imaginó que le avisaban que dentro de seis días iba a morir y se dedicó con todo su fervor a prepararse para bien morir. Pero pasaron lo seis día y no se murió. Entonces creyó que eran seis meses los que le faltaban de vida, y dedicó ese tiempo a lecturas espirituales, oraciones, limosnas a los pobres, reconciliarse con todos sus enemigos, y así día tras día. Pero a los seis meses tampoco se murió. Se imaginó que el plazo que le habían anunciado eran seis años, y durante ese tiempo se dedicó igualmente a todas estas cosas, y a los seis años... lo que le llegó no fue la muerte sino el nombramiento de Emperador.
    Un afectuoso saludo a todos los lectores y escritores de este maravilloso Blog.

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  4. Le agradezco mucho sus palavras.
    No conocía la historia de San Enrique,aunque si a mí me dicen que me quedam"seis",creo que en lugar de prepararme para bien morir,aprovecho para bien vivirlos...

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  5. Obrigada,Maria João,pelas tuas palavras que me motivam tanto para continuar com isto.Gostaria muito de manter o entusiasmo que sinto agora,é bom fazer coisas diferentes e conhecer gente como tu.Beijinhos

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  6. Gostei muito do teu post e dessa forma bonita como falaste da tua avó.
    Deve ser horrível peder quase tudo o que se tem, mas nós vamos aprendendendo a sobreviver às perdas e aos desgostos da vida.
    E acho que é muito importante que, sem nos deixarmos absorver por esse medo, termos contudo a consciência de que nada nesta vida nos pertence realmente e tudo o que temos e até o que somos, nos pode ser retirado de um momento para o outro. Perder o emprego, um incêndio, uma doença...eu sei lá o quê...de um momento para o outro a nossa vida pode sofrer uma mudança de 360º. Tenho consciência disso e todos os dias agradeço a Deus o que tenho.

    A tua avó devia ser uma pessoa extraordinária, porque pelo que contas foi uma pessoa que passou pelos desgostos, mas não levava a vida a lamentar-se disso. Andou para a frente sem lamentações. Uma mulher forte e digna de admiração.

    Acho que a neta sai a ela...

    Gostei de andar por aqui a ler mais uns post. Alguns já tinha lido e até deixei comentários.

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